ASSOCIAÇÃO 25 DE ABRIL

Conselho da Revolução

Li com atenção o livro Conselho da Revolução, da autoria da Maria Inácia Rezola e do David Castano, que cumprimento.

Gostei.

Trata-se de um bom contributo para ajudar, através da análise da existência e da vivência de um Órgão de Soberania se reviverem os acontecimentos e a postura dos militares, na luta que tiveram de desenvolver, no sentido de cumprirem todos os compromissos assumidos nessa radiosa e maravilhosa madrugada libertadora. 

Órgão de Soberania que, apesar de inédito nas democracias – tão inédito como inédito e único foi o 25 de Abril de 1974, em termos de rupturas políticas desenvolvidas por militares (Com efeito, se o 25 de Abril é um acontecimento único na História Universal, também não conheço uma situação semelhante em democracias políticas, como foi a que, desde o “dia inicial, inteiro e limpo” os Capitães de Abril prometeram aos portugueses e ao Mundo).

Importa ter presente, no entanto, que se nesse dia histórico e único na nossa vivência como País, foi derrubada a ditadura; foi liberta a Liberdade; foram abertas as portas ao fim de uma guerra que nos consumia há 13 anos e à obtenção da tão almejada Paz; foi prometido que no futuro os portugueses seriam donos do seu próprio destino e governo, através da implantação de uma democracia; se nesse dia se deu início a um processo revolucionário com o povo português como principal protagonista; também nesse mesmo dia começou a contra-revolução, com os então vencidos a mascararem -se de democratas e progressistas, fomentando tudo o que podia obstar a que o Programa apresentado pelo MFA pudesse ser concretizado.

Não podemos pretender, nem os próprios autores deste livro o pensam, que tudo aqui está, tudo fica claro, com esta publicação.

O próprio livro tem algumas lacunas, naturalmente resultantes de ainda não estarem disponíveis todos os pormenores do sucedido  – afirma-o um dos principais protagonistas dessas lutas -, mas a sua qualidade, a honestidade e a isenção colocadas na sua feitura, fazem deste livro um documento essencial para quem queira estudar e conhecer o que então se passou. Mais do que conclusões, os autores fornecem dados, cada um tirará as suas conclusões…

Como interessado directo, é com natural satisfação que vejo aparecer uma importante prova da actuação do MFA que levou a que – terminada a acção concreta dos militares na vida política do País – ao regressarem a quartéis, como sempre afirmaram ir fazê-lo, pouco mais de oito anos após a acção inesquecível dos Capitães de Abril, todas as promessas então feitas, todos os compromissos então assumidos, estavam realizadas e cumpridos. 

E, porque há quem tente diluí-lo, branqueá-lo ou mesmo mascará-lo e até esquecê-lo, importa recordar esses objectivos prometidos e alcançados: a conquista da Liberdade; o fim da guerra colonial e a construção da Paz; a devolução total do Poder aos cidadãos, com a construção da Democracia e do Estado de Direito, respaldada numa Constituição da República, resultante dos actos eleitorais mais livres e mais participados que Portugal alguma vez conhecera e vivera (sendo minha convicção que dificilmente voltará a conhecer).

Como este livro nos recorda, não foi uma tarefa fácil, a caminhada foi bastante difícil, porque cheia de obstáculos.

Não foi fácil ao MFA lutar, quer contra os que no seu interior promoveram ou se deixaram levar por projectos com objectivos diferentes, incluindo com recurso à força militar – o nascimento do órgão de soberania aqui analisado resulta directamente de uma dessas tentativas – como não foi nada fácil lutar contra as formações políticas que, infelizmente, não sei se pela sua natureza, olham preferencialmente para o próprio umbigo.

Não foi nada fácil! 

Por isso, o ter-se conseguido encontrar, em cada momento, soluções à volta do essencial, conseguindo, algumas vezes In extremis, evitar o confronto máximo da guerra civil, tem de ser considerado como um autêntico milagre (se é que eles existem), constituindo inequivocamente a maior vitória do Movimento que congregou os militares de Abril, ou seja o MFA.

Não foi fácil e se, em situações extremas, tivemos de recorrer à força, a acção desenvolvida foi essencialmente diplomática. Felizmente, o sucesso foi total.

Por tudo isto, não há coisa que mais me ponha fora de mim do que assistir à afirmação de que “nós acabámos com a tutela militar, os militares regressaram aos quartéis, porque nós a isso os obrigámos”.

Nós, militares de Abril, que tivemos de prender-nos uns aos outros, para garantir o cumprimento dos compromissos assumidos, onde a devolução do Poder aos portugueses democraticamente escolhidos ocupava lugar cimeiro, sermos acusados de que só regressámos a quartéis porque os políticos a isso nos obrigaram!

Continuar nessa onda, como alguns teimam em continuar, é esquecer o permanente pedido, então feito pelos políticos aos militares, de um cinto para os ajudar a aguentar as calças! É continuar a ter uma prática de hipocrisia, que é precisamente um dos defeitos do ser humano que mais abomino. Mas que, infelizmente, está muito presente no mundo da política…

Assistir, hoje, passados 39 anos, à reedição dessas calúnias, por parte do chefe do Governo que liderou essa ignominiosa mentira, revolta-me profundamente.

Ainda que não devesse estranhar e surpreender-me, bastando recordar-me da atitude inqualificável que então  assumiram, com um acto de abuso de poder e benefício próprio dos membros das suas tribos: falo da atribuição de pensões aos familiares das três vítimas partidárias do acidente, esquecendo os familiares dos pilotos, igualmente vítimas mas não pertencentes a essas tribos partidárias.

Escândalo que já seria grande, pela circunstância de o acidente fatal não ter ocorrido em qualquer actividade de Estado, mas sim numa actividade simplesmente partidária, mas que se tornou de dimensão enorme, quando se deixam de fora vítimas, apenas por não usarem a camisa partidária dos senhores do Poder. Como se prova, ao evocar este episódio, a ética não se pode limitar a pomposas declarações…

Aliás, como verificámos pouco tempo depois, nada de estranhar. O mesmo partido geraria um outro Primeiro Ministro que, na sua permanente obsessão de ódio ao 25 de Abril, viria a negar uma pensão aos Capitães de Abril Salgueiro Maia e David Martelo, recusando considerar que o 25 de Abril constituía a prestação de serviços relevantes ao País, contrariamente ao que esteve na base da sua decisão em atribuir essa pensão a dois agentes da PIDE/DGS, por considerar que a sua participação na guerra colonial era merecedora da classificação de serviços relevantes ao País!… Confesso que, por mais tolerante que queira ser, não consigo praticar essa virtude, para com quem continua a proceder com tanta hipocrisia!…

Os militares de Abril não exigem agradecimentos ou prebendas especiais. Demonstraram-no desde as primeiras horas!

Agora, também não admitem que quem deveria “beijar o chão que eles pisaram“, como se diz na minha terra, venham acusá-los de terem tentado ficar indefinidamente no Poder!

Como Capitão de Abril, é, pois, com enorme satisfação que assisto à publicação de um livro que prova, com factos concretos, o que acabo de afirmar.

Ao longo do livro, podemos perceber melhor como tudo se passou, quem assumiu umas posições ou outras.

Gostaria de realçar algumas das verdades que, em meu entender, podemos aqui constatar. Serei suspeito, fui um dos principais intervenientes nessas lutas, aponto as que mais me tocam:

. Realço, em primeiro lugar, a diferente postura dos Capitães de Abril e dos responsáveis políticos (nomeadamente dos partidários, mas infelizmente também de alguns militares). Enquanto para os responsáveis políticos os compromissos assumidos são facilmente esquecidos, substituídos e ultrapassados – o argumento das conjunturas é o mais utilizado – os militares de Abril nunca os renegaram, sempre se mantiveram fiéis aos mesmos, honrando acima de tudo a palavra dada!

. Uma outra conclusão é possível retirar, em minha opinião.

A de que a criação de um órgão como o Conselho da Revolução, onde passaram a ser debatidas todas as questões de natureza político-militar, permitiu retirar dos quartéis essa mesma discussão e evitou a repetição do que acontecera na Primeira República, com constantes quarteladas.

Nada melhor que olhar para a duração das duas Repúblicas, para se entender a importância deste fenómeno, deste “pormenor”, digamos deste “pormaior”.

. Facilmente se constata também o facto de as várias tentativas golpistas da direita (sempre através de militares) de rasgar o Programa do MFA, ao falharem – pela força dos Capitães de Abril, reforçada pela incompetente incapacidade dos golpistas – darem origem à aceleração do processo revolucionário, chegando a pôr em perigo o processo de consolidação do 25 de Abril.

Seja-me permitido acentuar aqui um sentimento que tive ao ler o livro.

No decorrer da leitura, com um entusiasmo que já não experimentava há algum tempo, pude recordar muitos episódios vividos, algumas vezes com pormenores que já não tinha presentes, eu que até mantenho uma muito razoável memória.

Em muitos desses episódios, dei por mim a pensar que seria útil acrescentar-lhes pormenores ainda não do conhecimento público e, portanto, insuscetíveis de terem sido considerados pelos autores (isto para além de algumas pequenas imprecisões do livro que deverão ser considerados numa provável reedição).

Este sentimento, de ter vontade de completar o narrado, aumentou a minha vontade em prosseguir o que venho fazendo de há algum tempo a esta parte: escrever as minhas memórias, na forma da recordação de estórias de vida.

O aumento dessa vontade não me convenceu ainda à sua publicação.

Apesar de muitas vezes ter enorme vontade em o fazer, nomeadamente quando assisto ao assumir de falsas posições, facilmente desmontadas quando a realidade for conhecida, o facto é que a sua divulgação colocará em má situação alguns dos mitos que, entretanto, se constituíram. 

E, como afirmei em “do Interior da Revolução”, não sei mentir, não sei ser hipócrita, teria de pedir novamente a compreensão dos amigos que porventura desgostasse.

Uma intenção estou procurando concretizar: escrever as memórias, nem que seja apenas para Memória futura.

Não prometo ainda qualquer decisão, é um dos dilemas – e, porque não, pequenos dramas? – que terei de ultrapassar.

Este livro trouxe-me pessoalmente à recordação alguns aspectos da permanente luta que, quer eu quer os meus camaradas Capitães de Abril, desenvolvemos.

Talvez o principal sentimento tenha sido recordar uma afirmação do Pezarat Correia quando, perante a evolução da situação, nos questionava “Porquê, nós que fomos capazes de nos opor aos projectos contrários ao espírito de Abril, que fomos capazes de nos opor ao Vasco Gonçalves, não somos capazes de nos opor ao ‘suave deslizar para a direita'”? Que fique clara a definição desta direita referida pelo Capitão de Abril Pezarat Correia: não se tratava da direita, enquanto solução política democrática, mas sim da direita enquanto defensora de soluções muito pouco democráticas.

Tudo isto vem reforçar a minha opinião, cada vez mais consistente, sobre o que se passou no 25 de Novembro, com a amálgama das diversas sensibilidades no seio do MFA. 

Já tratei esse tema nas Reflexões que aceitei fossem publicadas na segunda edição do livro 25 de Novembro.

Hoje, passados mais uns sete anos sobre esta publicação, possuo novos elementos que me permitem conhecer melhor o que então se passou. Aqui está um dos assuntos onde este livro que aqui apresentamos poderá vir a ser melhorado. Por mim, já escrevi, mas… ainda não me decidi pela sua publicação. O meu pedido de desculpas aos actuais historiadores, a minha promessa aos vindouros de que possuirão mais elementos para melhor escreverem a História.

Mas voltemos ao que considero se terá passado no 25 de Novembro de 1975 e viria a influenciar decisivamente o que se passou depois e está descrito neste livro sobre o Conselho da Revolução:

Aparentemente, no MFA, digladiaram -se apenas duas tendências.

Aconteceu, no entanto, que na tendência considerada vencida existiam duas bastante antagónicas. E se uma delas conseguiu sair da contenda sem ser arrasada, a outra, não percebendo, como nunca percebeu, o imbróglio em que se deixara envolver, é efectivamente a vencida.

Do outro lado, nos considerados vencedores, conviviam três tendências, ainda que a capa tipo guarda-chuva fosse a dos Moderados ou Grupo dos Nove.

E se a resultante foi a vitória aparente dos que defendiam o Programa do MFA, dos que defendiam uma Democracia plena, que evitaram que o grupo que encarnava a vontade de um regresso ao passado tivesse sucesso na consumação de um novo 28 de Maio, essa vitória só foi possível com o apoio e acção da sensibilidade que pugnava por uma Democracia mitigada, uma Democracia Q. B.

Daí que, enquanto os defensores de um regresso ao passado pouco puderam estrebuchar, a luta que está evidente neste livro viria a ser entre os defensores da Democracia plena, que os autores chamam de conselheiros históricos, e a tendência da Democracia mitigada, representada pelos conselheiros por inerência, reforçados por dois conselheiros da Força Aérea que, como se sabe, nem sequer entrou efectivamente no 25 de Abril ( aliás, Costa Neves, o terceiro elemento deste Ramo, um  dos poucos intervenientes na operação ” Viragem Histórica”, manteve-se sempre como conselheiro histórico). 

Como resultado desta situação, o MFA teria imensas dificuldades em se opor a  uma intensa perseguição e marginalização dos Capitães de Abril, situações que se afloram neste livro, ainda que de forma não exaustiva. 

Era a velha hierarquia, depois do valente susto que apanhara, depois do resguardo “debaixo das secretárias“, a fazer valer a sua vingança. 

Com um forte apoio do Presidente da República Ramalho Eanes, militar de Abril em quem os conselheiros históricos haviam apostado, face ao posicionamento de Costa Gomes, que se recusara a concorrer às eleições presidenciais.

Os conselheiros históricos, representantes do verdadeiro MFA (“herdeiros” da Comissão Coordenadora)queriam ter ido mais longe? Certamente, mas o essencial foi alcançado e, como se afirma no final do livro, “O principal foi alcançado. Pela primeira vez na sua longa história, Portugal era uma democracia e, ao contrário do que era comum em diversas latitudes e em diferentes épocas, os militares tinham desempenhado um papel fundamental nesse trajecto”! 

Por isso, os Capitães de Abril, sentindo-se realizados, não conseguem compreender como continua a haver quem procure menorizar a sua acção, continuando a propagar o que constitui o maior dos embustes que criaram, na tentativa de usurpar a acção dos “homens sem sono”, na construção da Democracia.

Como se pode constatar na leitura deste livro, é inatacável que os militares, terminada que foi a sua acção na construção de uma Democracia, saíram da vida política por vontade própria e não porque alguém a isso os obrigasse.

Podiam ter saído mais cedo? Podiam, se os partidos políticos tivessem conseguido entender-se e fazerem a revisão da Constituição mais cedo. A responsabilidade de, em vez dos quatro anos previstos, terem levado seis anos é sua e apenas sua!

Este livro recorda bem a vileza, a baixeza de políticos para quem “os fins justificam todos os meios”, ao evocar a forma como os três partidos subscritores da revisão constitucional de 1982 levaram a efeito essa tarefa.

Atitude que provocou talvez a maior das mágoas com que os Capitães de Abril foram mimoseados: ao regressarem a casa, satisfeitos e honrados por terem cumprido todos os seus compromissos, são apontados como implicados numa tentativa de se manterem no Poder, por tempo indeterminado…

Mágoa e revolta que se intensificam, quando passados 39 anos assistimos à repetição dessas aleivosas mentiras…

Francamente, confio que este livro possa contribuir para que a verdade prevaleça. Não será fácil, numa época em que a utilização das mentiras é uma realidade incontestável, mas continuo a acreditar que o velho ditado popular de “que a verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima” continua a ter razão de existir. Nós sabemos que “uma mentira repetida muitas vezes, se transforma em verdade”, mas continuamos esperançados em que desta vez não seja assim.

Termino com a evocação de uma afirmação que fiz, na comemoração do 8* aniversário do 25 de Abril, pouco antes de terminado o Conselho da Revolução, que os autores fizeram questão de incluir no seu livro.

Faço-o, porque nestes 39 anos os militares de Abril, em conjugação com muitos civis de Abril, cumpriram essas minhas afirmações/promessas, através da Associação 25 de Abril, fundada no próprio mês em que o Conselho da Revolução foi extinto. Faço-o com a honra e uma pontinha de orgulho, resultantes de ser o seu sócio número 1 e, durante estes mesmos 39 anos ter dirigido a sua acção.

“Não se iludam os que pensam que o MFA está dissolvido. O MFA não poderá ser dissolvido porque não foi, não é, nem será, uma organização formal que se possa dissolver. O MFA foi, é e continuará a ser uma atitude política, social e moral, de um grupo vasto de cidadãos militares em torno de uma ideia força: devolver ao povo português o exercício pleno da soberania, e garantir que nunca mais lhe seja retirada. O MFA foi, é e continuará a ser um espírito de acção em torno dessa ideia. O MFA foi, é e continuará a ser uma ligação informal e automática”.

E termino mesmo, renovando as minhas felicitações aos autores, e também aos editores, com uma declaração que estou convicto a generalidade dos membros da Associação 25 de Abril subscreve: ” Podíamos ter ido mais longe, podíamos ter conseguido mais, confiamos ir ainda mais além, mas honramo-nos por estarmos a contribuir para que o Portugal de Abril se mantenha, passados todos estes anos, estando prestes a ultrapassar o tempo de duração da ditadura e a atingir os 50 anos de idade”!

11 de Setembro de 2021 

Vasco Lourenço 

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